Ribeirão Preto apresenta uma grande e forte inovação em matéria tributária, especialmente na fixação do imposto predial e territorial urbano (IPTU), que tanta indignação gerou na cidadania pela prática da urgência urgentissimamente urgente que culminou no seu aumento extravagante e apressado.
O processo legislativo, com suas variadas etapas, inicia-se com a discussão e com a elaboração de um projeto de lei, e quando esse projeto tem grande efeito no bolso do contribuinte, ou é de grande efeito social, administrativo, ambiental ou jurídico, deve ser, no mínimo, discutido em audiência pública com a sociedade civil. Isso sem mencionar a gestão participativa, que o Estatuto da Cidade impõe.
Entretanto, nossa cidade assistiu, durante o ano, a inércia dos agentes políticos quanto a essa matéria, tendo a Câmara de vereadores recebido, no mês dezembro, o projeto de atualização da Planta Genérica de Valores, não o votando imediatamente, para fazê-lo na sessão seguinte, depois de propalado acordo. Assim a Câmara votou, assim a Poder Executivo sancionou e publicou a lei, no dia 28 de dezembro de 2012, que definiu o valor alterado para muito mais do nosso IPTU.
Se o IPTU não está sujeito à regra de eficácia e validade da cobrança do imposto após noventa dias, esse mesmo imposto está sujeito a outro princípio: o princípio da anterioridade. Tal princípio obriga que a fixação, por lei, do imposto aumentado seja decidida e publicada no exercício financeiro anterior ao da sua cobrança.
Se na Constituição da República nenhuma palavra é inútil, o que não dizer de um princípio nela consagrado, que vale mais que uma lei, já que é o princípio que abastece de normatividade todo conteúdo da ordem jurídica, ou seja, todas as leis, decretos etc.?
O legislador constituinte, aquele legislador que elaborou e votou a Constituição, quando abriu exceção à aplicação do lapso temporal de noventa dias para cobrança do imposto votado no exercício anterior, seguramente não votou o princípio da anterioridade para que os agentes públicos do executivo e do legislativo votassem num dia, e assistissem de camarote a cobrança do imposto a partir do dia seguinte.
O pressuposto com o qual se deve ler a Constituição − e o legislador constituinte assim o colocou −, primeiramente se relaciona à pessoa humana (no caso, o contribuinte ou mesmo pessoa jurídica), naquilo que for possível aplicar a ela os direitos fundamentais daquela. Assim, constitui obrigação limitadora do Poder Público o respeito absoluto à pessoa. Aliás, esse valor ético-jurídico (dignidade da pessoa) revoluciona a história constitucional do Brasil, tornando-se protagonista em 1988, e contrariando toda sequência das constituições anteriores, que celebraram o Estado como protagonista.
Assim, o inusitado processo de urgência urgentissimamente urgente de votar, decidir, sancionar e publicar tudo num dia só constitui uma afronta a cada e toda pessoa contribuinte, física ou jurídica, porque viola grosseiramente a finalidade do direito ao princípio da anterioridade, já que esse confere à cidadania a chamada previsibilidade objetiva de seus encargos tributários para o ano que virá. Por isso, a lei do tributo majorado não pode surpreender.
Se esse princípio da anterioridade − reconhecido como direito fundamental e, portanto, integrante da cláusula pétrea, só modificável por nova Constituinte − existe para que a pessoa compreenda e assuma suas novas obrigações financeiras, mas com tempo para planejar como lidar com o gravame havido, não se pode acreditar que esse IPTU-afogadilho tenha respeitado esse direito à anterioridade. Se não existe palavra inútil na Constituição, ele não pode ser considerado mera moldura ou mero enfeite. Ele tem um efeito de proteção das pessoas, que estão sendo agredidas pela lei votada e publicada no dia 28 de dezembro 2012 e eficaz e cobrável a partir do dia 1º de janeiro do corrente ano de 2013, por força da violação de um direito fundamental.
Mais ainda, os fundamentos estruturantes do Estado brasileiro, como o da dignidade da pessoa humana e o da cidadania, converteram “a gestão democrática das cidades” em um ponto final no tempo no qual só o Estado, leia-se município, é que regrava a convivência social e o desenvolvimento planejado da cidade, já que os negócios públicos devem hoje em dia necessariamente contar com a participação da sociedade civil, o que está absolutamente esquecido nessa lei vigorante.
Assim, a lei do IPTU-afogadilho viola gravemente princípios constitucionais, que servem de garantia à pessoa e à cidadania, como também não atende à imposição dos princípios relativos à participação popular, consagrada na “gestão democrática do Estado”.
Enquanto, do ponto de vista do Estado-arrecadador (leia-se município), o princípio da anterioridade foi formalmente respeitado; do ponto de vista da pessoa, que é o protagonista da Constituição, ele foi materialmente violado.
Publicado originalmente em O Diário, Tribuna e Enfim, em 18 de janeiro de 2013