O Brasil viveu, em 1988, a euforia de uma Assembleia Constituinte que marcou o sinal institucional do fim da dominação militar. Durante meses, ela ouviu todos os segmentos da sociedade, em um tempo de debate e de discussão até prolongados. Vinte e oito anos depois da Constituinte, ocupa a vida nacional um fenômeno absolutamente inusitado, pois acontece a disfarçada violação de princípios estruturantes do nosso pacto jurídico-social numa dissimulada reforma da Constituição. Só que tal reforma celebra a “clandestinidade institucional”, na sábia caracterização de Wanderley Guilherme dos Santos, pois ela acontece não como uma Constituinte reformista, mas por meio do palco judiciário, no qual o salve-se quem puder da vida social em crise converte-se em interpretação, ou hermenêutica jurídica, para ousados operadores do direito, que vão da ousadia à arrogância, definindo a seu gosto e conveniência o momento histórico como excepcional, no qual, dentro dele, só eles, uns poucos, têm a iluminação eterna da salvação.
Se os constituintes desejavam estimular o sentimento de nação, isso foi ficando cada vez mais distante, até esse momento em que a corrupção serve de alimento aos poucos heróis de plantão, como incentiva a indignação popular, que se sente naturalmente lesada diante de tanto espetáculo de inúmeros roedores do interesse público.
Só que, ao contrário dos que declaram, a corrupção, ainda que grande, como é, não é o maior problema do Brasil. Tanto que se sabe que ela não acaba nunca, independentemente da fúria de qualquer oportunista oficial, como se sabe que ela deve ser encurralada permanentemente, com instituições fortes, servidores que cumprem seu dever com discrição, e organização participativa da sociedade para que os negócios públicos sejam analisados por todos.
Nesse quadro de “clandestinidade institucional”, revogou-se o princípio de não culpabilidade para mandar para a cadeia o réu condenado pelo Tribunal recursal mesmo que não haja trânsito em julgado da sentença condenatória. Tal decisão apertada do Supremo Tribunal Federal seria possível com a reforma da Constituição. No entanto, o mais grave é que tal princípio foi revogado sob o pretexto de que o tal Luiz Estevão usou de todos, e seriam muitos, os recursos judiciais, tal como outro condenado, o jornalista Pimenta, os quais demoraram par cumprir a condenação. No entanto, o vagar vagaroso da justiça não serve de razão para se extinguirem recursos, e muitos menos serve de motivo para na prática revogar um princípio, quando esse vagar vagaroso deve ser examinado à luz da qualidade da justiça. Afinal, um princípio é mais do que uma lei. Um princípio ilumina a aplicação da lei, um princípio oferece à inteligência do magistrado o campo imenso da interpretação jurídica, cujo resultado deve obrigatoriamente ter seus parâmetros na ordem jurídico-constitucional, ou deve corresponder a ela.
Nessa “clandestinidade institucional” assistiu-se à impunidade de ordens ilegais, apesar de repetidas, e às vezes lamentadas, que não receberam o efetivo crivo de honradez para neutralizá-la.
Quantas vezes aquele empresário brasileiro, cuja empresa acumula cinquenta anos de know-how empresarial, foi condenado? Antes do processo penal, houve a demonstração televisiva de sua “maldade” pela frente justiceira de Curitiba, veiculando-a para o mundo todo. Qual a sentença condenatória que terá esse efeito universal? Qual a sentença absolutória que terá esse efeito universal? Qual o juiz, mesmo que honesto, terá a coragem moral de se opor a essa pressão moralista, fundamentalista, que a televisão amplia por muitas vezes?
A novidade é a do juiz praticamente presidir a investigação, cometer abuso, e, quando flagrado, pede desculpa, mas ainda julgará a ação. Será que a imparcialidade existirá, no caso, como esforço de imparcialidade, como dever e como decência? Será que humanamente ele, que cometeu erro como juiz, não irá na linha do erro que foi obrigado a reconhecer? E os vazamentos direcionados e ilegais, quem responderá por eles? E a invasão do domicílio da pessoa com base em denúncia anônima não terá decretada a responsabilidade de seus autores e mandantes? Não está escrito na Constituição que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude da lei”. Se a lei é para todos, como os oportunistas disseram para perseguir políticos, não valem para eles?
Os operadores do direito que atacam nessa vanguarda justiceira esquecem-se de que o povo brasileiro inscreveu dois princípios, que nem a baba venenosa do combate à corrução revoga. O primeiro é o principio da dignidade humana, que obriga a convivência das pessoas a respeitar o limite de cada uma, sem causar humilhação a quem quer que seja. O segundo princípio é que o Estado não é mais o protagonista da Constituição, como era no período da ditadura e como era, antes dela, no período de vigência de todas as anteriores Constituições. Agora, o protagonista é a pessoa. Seja pobre, rico, branco, negro, pardo, empresário, operário, estudante, trabalhador, criança, adulta, suspeito ou não, cada um e todos devem ser tratados com o respeito imposto pela Constituição.
Se a interpretação de revogar o princípio da não culpabilidade foi feito em razão do Estado ou do interesse público, até nisso está equivocada, porque a pessoa humana, e até a pessoa jurídica, como prevê o Código Civil, como princípio e como fundamento, impõe interpretação mais favorável quando ocorrer dúvida, que, aliás, não havia, já que, quando se revoga princípio por causa de fato circunstancial, é só um rematado e grande absurdo.
Os empresários, nessa onda, estão sendo mais apenados do que assaltantes de bancos. E, nessa onda, empresas nacionais que erraram, quando efetivamente erraram, não podem ser tangidas à falência. Qualquer livro jurídico revela a função social da empresa. As obras não poderiam ser paralisadas, independentemente da apuração de quaisquer falcatruas, porque milhares de pessoas dependem dessas empresas, e as obras não podem ser oneradas pelo espírito justiceiro que deseja multas compensatórias avantajadas, quando a paralisação dessas obras atinge milhões e milhões de prejuízo. Para não se lembrar da consequência antinacional de abrir-se, forçadamente, ao capital estrangeiro o mercado nacional. Um país não pode perder nem suas riquezas, nem seu mercado.
O concerto do e para o impeachment desconcertou a regra democrática e a coerência da excepcionalidade está revelada na comparação das decisões da Lava-Jato com as do Supremo Tribunal, com seus atrasos calculados e permissão de grampos ilegais, conforme atual trabalho realizada pela pesquisadora e professora Eloisa Machado de Almeida, da FGV-SP, doutora em direito pela USP e coordenadora do Centro de Pesquisas Supremo em Pauta.
Essa onda do protagonismo do Poder Judiciário e do Ministério Público, que, aliás, já apresenta escaramuças entre si, terá outro efeito positivo, logo no segundo tempo, pois, a opinião pública invadirá os meandros desse Poder e dessa Instituição, e forçará o exame crítico e criador para cada qual, avaliando a democratização da forma de acesso aos pretendentes à toga, se por concurso ou por voto, por exemplo, fixando responsabilidade para os atos de abuso, ainda que disfarçado, ainda que dissimulado de quem ocupe cargo ou função de autoridade, para evitar nova onda de “clandestinidade institucional”.
Afinal, diz-se, que a história, quando se repete, é como farsa.