A desgraça, ou a ameaça dela, sempre nos ensina.
Durante esses tristes e últimos anos, por exemplo, cansamos de ouvir que o “mercado disse”, “o mercado decide”, o “divino mercado tudo sabe e tudo resolve”, “o mercado apoia e o mercado não apoia”, “o mercado não gostou”, “o mercado supre a base política daquele Presidente carente dela”… É a celebração da livre concorrência desenfreada, livre iniciativa absoluta, desejosa de substituir o Estado, essa pessoa jurídica intervencionista, foco da corrupção, essa senhora sempre disposta a se casar com qualquer adjetivo. E com essa mentalidade reducionista, o Estado deveria ser escrito com letra minúscula, tal o desprezo que merece.
O Estado e sua necessidade nas crises, especialmente para os pregadores de sua desvalia, só aparece quando tais pregadores invocam, eles mesmos, a falta de coordenação do Estado, os milhões do Estado, as diretrizes do Estado, para realizar o que ele, Estado, deve fazer na crise, pois sem ela, agora viral, o discurso salvacionista premiava, até recentemente, o “divino mercado”.
Reclamou-se da posição realista e produtiva do governo da união federal, dispersa, com o Ministro da Saúde ocupando a cena, enquanto governos estaduais estão mais cooperativos entre si. Tal era a situação descoordenada nacionalmente que até ciúme o subalterno da saúde despertou. Ele estava trabalhando mais e melhor, dialogando, sugerindo, propondo. O ciúme, justamente esse sentimento menor e forte, serviu de ingrediente para o Presidente da República sair da letargia do que chamou de “gripinha”, que teria sido prestigiada exageradamente pela imprensa espalhafatosa, para continuar dizendo “gripinha”, após a reunião com governadores, contrariando as diretrizes de seu próprio Ministério.
O Ministro, no palco nacional e sozinho, era demais. Era preciso que o Ministro o agradasse, então escolheu um tema sensível, que revelaria simbólica lealdade, propondo até o que não lhe cabe – o adiamento das eleições municipais.
Ora, esse adiamento interessa justamente ao político que perde popularidade, crescente e crescentemente. Aquela tensa reunião com governadores, no entanto, não evitou a prática do vai e vem, do diz não diz do discurso presidencial, que só gera maior instabilidade, maior incerteza e confusão institucional e política, que só se explica como preliminar obrigatória de um golpe sonhado e para o qual ele dobra qualquer aposta.
Mas estamos falando dos homens do Estado, não dos homens do divino mercado. Aqueles têm por dever da função pública coordenar medidas e programas; colocá-los em prática; atender e prevenir a população; recomendar o que é necessário para sua integridade e, acima de tudo, garantir o abastecimento do comércio; o trânsito nas ruas e estradas; estudar a estratégia do consumo que é obrigatório para se alimentar, e dinheiro, dinheiro, para pode comprar. Mas se o poder aquisitivo emagreceu com a ausência de políticas desenvolvimentistas e com a reforma das relações do trabalho, ampliou-se a taxa de desemprego e aumentou-se a informalidade errática, como invocar o poder aquisitivo? Afinal, a solidariedade social está acuada pela santa individualidade empreendedora.
Os homens do divino mercado têm como objetivo, até patológico, o lucro, o ganhar mais, sem pagar imposto algum sobre lucros e dividendos, tal como Ciro Gomes democratizava essa informação e exigência, há meses.
Se Trump, esse exemplar de dinossauro político, revogou o sistema de saúde do Presidente Obama, agora na crise criada pelo vírus da “gripinha”, ele, preocupado com a proximidade da eleição, quer distribuir trilhões em dinheiro diretamente à população. Mas ninguém se iluda, o dinheiro não é de seu bolso milionário, tal como foi na grave crise de 2008, quando os bancos receberam dinheiro do Estado para se salvarem da situação que eles criaram. E por sua vez, os seus filhotes nacionais, que abandonaram milhares de pessoas pelo desmonte apressado e ideológico do programa Mais médicos, agora falam em diminuição de hora trabalhada, suspensão do contrato de trabalho, em voucher para o trabalhador, uma espécie de bolsa família distribuída para milhões do nosso universo nacional.
É preciso colocar os pobres no orçamento, mas quando se fala assim, não se pode entender que o orçamento é o do “divino mercado”, pois o orçamento pensado é o orçamento público desse Estado, que procuram destruir.
O Estado não deve hostilizar o mercado, mas precisa traçar seus limites, hoje ampliados pela globalização financeira, que intoxica a soberania dos Estados, enfraquecendo-os, exigindo consciência e atitude hercúlea para que recuperemos nosso sentimento de nação.
Estado e mercado se completam. Na crise, seguramente, o mercado se encolhe, para que o Estado surja imperativo com a força que procuraram antes enfraquecer e destruir.
Vamos reforçar o Estado, na paz retornada, para que ele possa coordenar um projeto nacional de desenvolvimento, que não existe só com dinheiro alheio e sem poupança nacional.
A desgraça, ou a ameaça dela, nos ensina.