Esse período natalino, a pátria e o mundo oferecem à nossa reflexão uma realidade perversa. Tanta omissão. Tanta consciência indiferente ou ousadamente alienada, tal como essa grita às portas dos quartéis, local de terrorismo planejado, que nem sabe o mal causado por essa gritaria irracional e impatriótica e antidemocrática. Nessa escalada do ódio planejado, onde o seu sucesso não pode ser desprezado porque filho do discurso das armas, como instrumento de libertação. Libertar-se da democracia. A mãe desse absurdo é a impaciência autoritária, que se impõe pelo medo, pela violência, agora pelo terror descoberto em Brasília. Quem procurar saber o que foi a desgraça da ditadura no Brasil ou foge, ou não fica nesse devaneio ignorante e violento. Mas falemos hoje do retrato fiel da sociedade, cuja prova fica no espaço espremido das prisões, cuja população revela a violência da discriminação social composta pelo racismo estrutural, em cuja arca-de-noé encontram-se prioritariamente os negros, os pardos, as mulheres negras e pardas, levadas em regra, como aos jovens, à promessa de rendição pelas drogas. Esse espaço de crueldade está ausente dos discursos políticos, enquanto a mentalidade punitiva invade a política justiceira das cabeças dos profissionais da lei.
Fala-se de prisões. Fala-se da população carcerária. Fala-se de quantos não precisavam estar ali, sofrendo a antecipação de sanções, como a dos presos provisórios, que chegam aproximadamente a 300.000 (trezentos mil) no Brasil.
Esses infelizes já convivem, antecipadamente, com aquele uniforme que retira parte da sua identidade, com os penduricalhos que nos acompanham. Mas, a intimidade de ir-se ao banheiro fica estuprada com a presença do amontoado de presos, que ultrapassam em muito sua capacidade de ocupação. Diz antecipadamente, já que os presos já condenados e com a sentença transitada em julgado não têm mais a possibilidade de serem absolvidos, como os presos provisórios a têm, mas estes são tratados com a opressão prisional sem distinção.
O Brasil conta com aproximadamente 900.000 (novecentos mil) presos, e a política da condenação pedagógica, visando a ressocialização do preso condenado, fica cada vez mais distante, pois, as gangues estão dominando presídios, e não existe uma diferença clara que separe os presos condenados por crimes de pequeno potencial ofensivo daqueles de grande ou grandíssimo potencial ofensivo.
E a política de punição equivocada de drogados, muitas vezes confundidos como traficantes, aumentou a densidade da ocupação prisional.
E a perspectiva não é alentadora, pois a dignidade da pessoa pobre não pode ser confundida com qualquer potencial criminoso, que é igual nas pessoas ricas, mas a necessidade de comer e trazer comida para as famílias agravada por políticas nada solidárias, pode configurar uma condição, uma concausa de um ato delituoso. Aliás, a necessidade de comer é a primeira delas, mas há outras criadas pela sociedade de consumo, em razão da qual tantos objetos atraentes são oferecidos, porém, frustrados para a grande maioria, que aprofunda a revolta. Afinal, eles ouvem, há mais de 20 séculos, que todos são irmãos.
E não adiantam novos e novos presídios, muito menos os explorados pela iniciativa privada, já que a experiência norte-americana, que possui a maior população carcerária do mundo, revela que a prevalência da necessidade de lucro corta despesas, ampliando o local imprestável do presídio, quanto à higiene e à saúde em especial, para não dizer da barbaridade que articula o prolongamento da prisão para que o lucro maior seja garantido.
Esvaziar presídios deveria ser fácil para nossos governos, já que nosso país tem oito milhões de quilômetros quadrados de área, dentro da qual caberia qualquer experiência social inovadora.
A população carcerária estampa não só o crime, leve ou grave, que cada preso cometeu ou não, mas fundamentalmente revela a violência da sociedade desigual, que discrimina negros, pardos, mulheres e indígenas e membros do movimento LGBTQIA.
Nós precisamos sentir vergonha de nossas chagas sociais, como primeiro passo para adquirir-se coragem moral para inventarmos políticas de racionalidade de recuperação daqueles que cometem crimes, apenando quem realmente merece, e em nenhuma hipótese se permita que milhares de homens e mulheres fiquem presos sem julgamento rápido.
Eis a última reflexão do Ano Velho.
Feliz Ano Novo!