Se cada Câmara Municipal tivesse o hábito de ouvir a voz de uma celebração quando morre uma figura ligada à história, à arte, à música, ao trabalho ou à política, seguramente cumpriria um papel pedagógico e didático, válido para um aprofundamento da consciência democrática.
Não se sabe, ao menos até agora, de nenhum pronunciamento acerca do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, que faleceu recentemente no Rio de Janeiro, aos 95 anos de idade.
Se a tribuna parlamentar fizesse tal pregação, seguramente um maior número de pessoas conheceria o militar que ele foi. Como tantos outros, ele apoiou o golpe de 1964 na crença de que era a melhor solução para o Brasil. Rasgou-se a Constituição, afastou-se o presidente referendado por um plebiscito, presidente cuja habilidade política hoje se reconhece, mas que, apesar dela, não conseguiu vencer o isolamento ao qual fora condenado até pelas forças progressistas, que deveriam apoiá-lo.
Certamente, não foi um mero isolamento, já que a realidade nacional estava envolta num discurso radical da esquerda, que pretendia infantilmente assustar a burguesia. Tal foi o discurso que, de tão assustada, ela engrossou as hostes golpistas. Esse mesmo radicalismo, nas Forças Armadas, conseguiu um abalo provisório da sua hierarquia, como resultado da reunião de centenas de marinheiros e fuzileiros no dia 25 de março de 1964, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, que comemorava o segundo ano de sua fundação, sob a liderança do famoso cabo Anselmo, que o tempo desmascarou como agente da CIA colocado para desestabilizar o nosso governo. Mais ainda. Esse discurso radical, comprometendo o princípio basilar da hierarquia militar (um dos apelos: “reforma agrária na lei ou na marra”), fez com que a palavra dos militares nacionalistas perdesse eficácia dentro dos quarteis.
O almirante Júlio de Sá Bierrenbach seguramente não escapou a essa regra de instabilidade e insegurança institucional. Apoiou o golpe. Mas, não é esse apoio que lhe garante, por si, o seu ingresso na trincheira dos que lutaram pela restauração democrática no Brasil.
Seu gesto de coragem moral, de desassombro ético, que fez com que patriotas do Brasil o celebrassem, aconteceu quando era ele, em dezembro de 1982, ministro do Superior Tribunal Militar. Lá, o bisturi de sua honradez apontou, em um voto vencido (dez votos a quatro), o produto fabricado pela falsidade e pela mentira, como foi o Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado pelo 1º Exército para apurar a responsabilidade de militares pelo atentado ocorrido na noite de 30 de abril no pavilhão do Riocentro, situado na zona oeste do Rio de Janeiro. Seu voto era favorável ao desarquivamento do inquérito, e nele deixou claro: “Estamos diante de um crime dos mais nefandos, terrorismo à beira da impunidade. Por muito menos, este Tribunal já condenou alguns réus a muito mais”. O ministro-almirante prometeu ainda que não ingressaria em nenhuma unidade militar do Exército enquanto o ministro do Exército fosse o general Walter Pires, que atacara duramente o conteúdo de seu voto.
Para quem não sabe, milhares de pessoas, aproximadamente 20 mil, a maioria jovens estudantes, estavam presentes para assistir a um show de dezenas de artistas brasileiros em comemoração ao Dia do Trabalho, quando uma bomba explodiu no colo de um militar, matando-o e inutilizando o seu colega de farda, ambos dentro de um veículo, à paisana, ambos integrantes do DOI-CODI. Uma segunda bomba foi colocada na casa de força do prédio, mas não explodiu, falhou. Essa desgraça individual constituiu uma sorte coletiva, porque milhares de pessoas, que estariam surpreendidas e assustadas, na correria atropelariam umas às outras, pisoteando para ferir ou matar não se sabe quantas. Eram milhares. Felizmente não tiveram com que se surpreenderem nem se assustarem.
O porquê desse desatino ficou historicamente claro. Era preciso um ato trágico e sangrento para que a chamada linha dura do Exército, que temia a redemocratização que se aproximava, não perdesse o seu pasto de horror e ódio. E jogariam a culpa na esquerda. Mais grave das decepções, ainda, está em reportagem recente do jornal O Globo, segundo a qual o presidente Figueiredo e seu gabinete militar receberam, com um mês de antecedência, a informação dos preparativos desse atentado. Aliás, esse mesmo matutino carioca revelou a agenda do sargento envolvido no ataque, que expõe a rede de terror desse atentado.
Júlio de Sá Bierrenbach foi o militar que desventrou a mentira criada por uma minoria atrevida e violenta. Sua coragem moral só não impediu que os responsáveis diretos por essa montanha de falsidade fossem promovidos na hierarquia. Mas, isso lhe garante a gratidão dos brasileiros.
Para a memória dessa altivez morta, nada mais apropriado do que dizer, como homenagem, o que um militar responsável e cumpridor de seu compromisso com a pátria diz ao seu superior hierárquico quando retorna vencedor de um confronto justo: missão cumprida.