Aos 88 anos, Saulo Gomes, pleno de vida, memória intocada, encontra sua biógrafa, Adriana Silva, para juntos lançarem o livro Saulo Gomes: o grande repórter investigativo, com a narração da vida nascida como “um não escolhido no mundo dos escolhidos”. A edição do livro é primorosa na estética da forma e na expressão do conteúdo, com fotos memoráveis, inclusive a dele de cueca com um globo terrestre na cabeça, fazendo na rua propaganda de uma peça teatral, quando ainda não conhecera emissoras de rádio e televisão.
Foi vendedor, no jargão da época dizia-se “viajante”. Em 1957, ingressou na rádio Continental, antes teve experiência no circo. No livro, seu último trabalho é de 2002, um documentário sobre o Carandiru antes de sua demolição, dez anos depois do ruidoso massacre de 110 presos. Ele e sua equipe permaneceram no local filmando pavilhões e entrevistando presos por 36 dias.
Na época atual, rarefeita de jornalismo investigativo, o livro apresenta um patrimônio de coragem, pertinácia, sensibilidade, percepção do que é essencial, especialmente quando o fato vocacionado à noticia está em formação, e ele dentro dele para ela, como o do tiroteio, no dia 13 de setembro de 1957, na Assembleia Legislativa de Alagoas, depois cercada pelo Exército. Era a votação do impeachment do governador que seria votado, e dia do nascimento de Saulo, segundo ele, pois, Márcio Moreira Alves, levou um tiro, e gritava de dor, ali ao seu lado.
Ou quando ele começa de fora do fato, porque o crime já aconteceu, e garimpa os vestígios e os sinais que possam começar a explicação do crime ou do criminoso, até ir muito além da polícia, acabando por entregar a ela pessoalmente o autor do crime.
Sua fama corria o país, trazendo a marca da seriedade e da compostura jornalística. Tal seu conceito de responsabilidade, que um moribundo só confessaria a ele, como confessou, o nome dos criminosos que assassinaram uma família inteira. Tal confissão livrou da prisão, na qual já cumpriam penas, os três inocentes que a Justiça reconhecera como culpados e condenara.
Se alguém desejar escolher um emblema para gravar esse mérito, talvez o aconselhável seja o pedaço de pedra que lhe sobrou das três que recolheu em Buritizal depois que houve uma explosão noturna em São Simão, assustando a cidade e a região, e espalhando seus destroços para muito longe. Atraído para a área rural de Buritizal farejou até recolher as três pedras, que um laboratório do Canadá, anos após, declarou ser pedaço de um meteorito. Depois o material foi classificado e autenticado em publicação do Meteoritical Bulletin, e com o nome do descobridor já pregado oficialmente: Saulo Gomes.
Se o interesse for por dramaticidade, talvez a escolha recaia na permanência dele e de sua equipe de televisão, por 47 dias de imersão na cultura indígena, na floresta amazônica, “para registrar os dias em três aldeias distantes alguns quilômetros uma da outra”, pois, ali também se instalara um conflito entre duas tribos da nação caiapós: cubem-cram-quem, que significa gente de cabeça raspada, e gorotire. A razão dessa guerra era pelas mulheres que uma das tribos necessitava, e ainda seguia a tradição do sequestro. A viagem foi designada porque os índios haviam atacado e matado alguns brancos do garimpo, o que havia sido notícia nacional. Para chegarem lá, o avião primeiro, depois andaram nas trilhas da terra, entraram em embarcações parecidas com caiaques e foram pelas corredeiras do rio.
Entretanto, a essa experiência amazônica se contrapõe à da travessia Rio-Santos, em uma jangada, com cinco jangadeiros nordestinos, mar revolto às vezes, e que ainda tiveram que esperar, na calmaria, para o mestre da navegação, à noite, firmar o rumo sugerido pelo “fogo noturno”. O que era para durar três dias durou sete, com água salgada, fome, calor e, à noite, frio. Eles vinham, como um protesto pelas condições de vida e trabalho deles e de seus iguais, pretendendo ser recebido pelo presidente Costa e Silva, o que não lhes foi concedido.
Porém, para quem prefere viver a emoção da solidariedade ela está na campanha televisiva e radiofônica de auxílio ao Hospital do Fogo Selvagem de Uberaba, que mobilizou milhares de pessoas, com um volume de donativos levado numa fileira de caminhões até a cidade mineira. A campanha foi atendendo um pedido de Chico Xavier. Aliás, Chico que não tivera boa experiência anterior com a imprensa e resistia ao pedido de entrevistas, quando o conheceu disse ser Saulo a pessoa que ele esperava. Dito feito, iniciou-se a propagação da vida e obra do grande espírita, cuja morte foi mais um sinal de irradiação da doutrina espírita para a qual Saulo é um verdadeiro e dedicado protagonista.
Se a preferência é flagrar o repórter político, tem-se o testemunho da crise de 1957 (cassação do deputado federal Carlos Lacerda “o exterminador de presidentes”), irrompida na Câmara Federal, sediada no Rio de Janeiro, e agravada com levante militar de Jacareacanga e Aragarças. E nessa linha de se destacar um e outro trabalho, ele estava presente, depois do assustador rompimento da barragem de Orós, no estado do Ceará, em 1960, no nascimento da rede nacional da legalidade, em 1961, sediada na Rádio Mayrink Veiga, quando o deputado Leonel Brizola convocava o povo brasileiro para inibir, como inibiu os militares golpistas, redivivos em 1964, que não queriam dar posse ao vice-presidente Jango Goulart, depois da renúncia do presidente Jânio Quadros. Em 1964, conheceu a solidão do exílio. Depois, com sua volta, foi preso em São Paulo, e ainda sofreu restrição de trabalho quando liberado.
Saulo é um jornalista premiado por seus trabalhos, inclusive ele traz a honraria de ter sido homenageado, em 1957, pelo presidente Juscelino Kubitschek.
A matéria sob o título “Quem matou Che Guevara” descobre, na Bolívia, quem deu o tiro final no líder guerrilheiro. Se tal conteúdo fê-lo escrever um livro, também o levou a participar de seminário na Faculdade de Comunicação.
Os admiradores e os ouvintes que saudaram a seleção brasileira de 1958, quando os jogadores chegaram ao Rio de Janeiro, surpreenderam-se com a entrevista deles, ainda dentro da aeronave, não sabendo que Saulo, horas e horas antes, conseguira um uniforme de mecânico da antiga companhia brasileira, Panair do Brasil, com o qual circulou por espaços do aeroporto, distante dos seus colegas de imprensa, até a hora de subir as escadas e entrar no avião.
A atualidade desse livro, com a preciosidade histórica de cada trabalho – e são tantos! –, serve de contraponto ao que se tornou regra na imprensa investigativa brasileira, que se basta com a repetição de vazamentos oficiais, reiteradamente impunes.
Vê-se que Saulo atravessou o tempo com suas virtudes de repórter investigativo, pois a interação de seus textos tem o vínculo da verdade investigada e provada, o que fez com que ele fosse vencedor em mais de 106 ações penais propostas contra ele.
Sua voz foi ouvida por milhões de pessoas por meio de emissoras de rádio e televisão do Rio de Janeiro e de São Paulo. Sua personalidade se fez respeitada porque era e é amante da verdade, para contá-la e revelá-la aos milhares de cidadãos de seu país de geração em geração. A prova declarada está na dedicatória, que Adriana apôs em um livro no dia do seu lançamento: “As histórias revelam o tempo”. Sim, revelam o tempo e cada pessoa, protagonista nele.
Por isso, se diz que o antigo está atual.