Não existe pessoa de são e honesto pensar e viver que não tenha sentido vergonha da declaração de voto da maioria dos deputados federais favoráveis à destituição da presidente Dilma.
A análise daquele momento de perplexidade revela uma contradição insuperável entre a exigência singela de condução ética e impessoal naquele processo de tamanho significado político-social-institucional e a presença indigesta de Eduardo Cunha na presidência. Afinal, ele ocupa o noticiário de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão do país e do mundo com sua vocação contumaz de usar a máquina pública para aproveitamento pessoal e familiar. A propósito escreveu Vladimir Safatle, na Folha Ilustrada: “Não há tribunal algum no mundo cujo júri seja composto por cidadãos indiciados e por um juiz réu. O único lugar onde isso ocorre na galáxia é na Câmara brasileira de Deputados com o seu julgamento de impeachment”.
Se estivéssemos vivendo uma etapa de mínimo ético no exercício do poder, que a autoridade normalmente concentra, seja ela legislativa, executiva ou judiciária, seguramente não chegaríamos ao ponto de revelar ao exterior o espetáculo bizarro da destituição da presidente, uma tentativa conservadora de afastar os parâmetros da política de desenvolvimento social, com os reconhecidos erros cometidos, que não justificam sua substituição pela política liberal rentista (taxa de juros), sacrificando conquistas e avanços sociais, em homenagem à “santidade” do mercado, que não recebeu lição nenhuma com a crise que seu desmando provocou em 2008. Quando se afirma isso como essencial, não se concede favor a qualquer tipo de violação da lei, seja por corrupção, que sempre deve ser investigada e punida, como também a aqueles que em nome da lei a violam descaradamente, ainda que depois peçam desculpas, o que não extingue o crime em tese.
Porém, um derivativo desse momento crítico da experiência democrática é a forte impressão que ela causa no exterior, com a razão objetiva dela desvelada pelo articulista da revista britânica The Economist, Mark Weisbrot: “Foi o fim da ilusão que qualquer governo com pretensões sociais poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do dinheiro e uma plutocracia conservadora, sem que cedo ou tarde houvesse um conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima”.
Para explicar, no exterior, que o impedimento da presidente constitui um golpe (ou não), pois não existe ato doloso que se enquadre nas hipóteses previstas na Constituição para defini-lo como crime, Eduardo Cunha deveria designar-se, como presidente da Câmara dos Deputados, para fazer uma romaria internacional do esclarecimento de tantos absurdos, já que foi ele, ajudado pela oposição incompetente e sorrateira, o grande vitorioso. Vitorioso dessa vitória da qual rigorosamente nenhuma das partes levou o troféu, pois foi o Brasil que realmente saiu perdendo. Ninguém esclareceu o que seria o enquadramento de crime de responsabilidade. E para um juízo de admissibilidade da acusação é insuportável, até para o bom senso, supor que um Tribunal Político tudo sabe, tudo pode, quando o limite da atuação estatal é a Constituição. Se o Poder Político tudo pode, o legislador constituinte não precisaria descrever claramente na Constituição cada hipótese de crime de responsabilidade, indicados no seu artigo 85, nem o legislador ordinário precisaria invocar a lei 1.079/50. Fora desse âmbito, qualquer outro ato-fato imputado como infração político-administrativa precisa de lei formal que previamente a defina, porque não existe crime sem lei anterior que o defina como tal.
Para quem veiculava a notícia ou se alegrava com ela antes da votação, dizendo que o governo comprava votos com cargos ou promessas, a leitura do artigo de Janio de Freitas, de 21 de abril do corrente ano, no jornal Folha de S.Paulo, talvez provoque inesperada aversão: “No dia seguinte à votação, o jornalista José Casado (O Globo) escrevia: ‘Deputados comentavam as “cotações” do relativismo ético: R$ 1 milhão por ausência, R$ 2 milhões pelo voto no plenário’. De cotações nada ouvi, como não houve a resposta para a questão de maior importância: quem forneceu o dinheiro?”.