Recebo a notícia, depois a leio no jornal Valor Econômico: morreu Getúlio Bittencourt. Essa morte reaviva em mim algumas lembranças e muitas emoções, como aquelas que tive na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde se realizava o encontro do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Jovem, com seu cabelo crespo colado à cabeça, capa italiana, se aproximou de mim e perguntou-me se o conhecia. Diante da minha perplexidade, procurou lembrar-me de que eu já o presenteara com um livro. Eu?
Ele tinha sido o office-boy do escritório do dr. Romero Barbosa no início da minha advocacia em Ribeirão Preto, agregada, por alguns meses, ao escritório do dr. Romero e do Ney Mattar, carinhosamente lembrados. Ele era o office-boy que diariamente me mostrava uma crônica nova sobre cinema, o que me deixava surpreso e inquieto, pois aquele menino analisava filmes e diretores como gente grande, seguramente melhor do que eu, que na minha juventude até fiz dois cursos sobre cinema.
No encontro da Assembleia, ele já era jornalista consagrado e premiado por conseguir a famosa entrevista com o gel. Figueiredo que a Folha de S.Paulo publicara. Uma vez, o encontrei rapidamente, em Brasília, durante o governo José Sarney. Depois, muito tempo depois, fui encontrá-lo, em São Paulo, como editor do jornal DCI.
O dia em que lhe mandei um bilhete com um artigo para publicar, imediatamente me ligou. Antes, ele contou à secretária dele o que eu contara à minha sobre a nossa amizade e nosso encontro lá longe. Ambas tiveram a mesma emoção, ambas se comoveram.
Aí, fui à casa dele com meu filho, quando esbanjou uma biblioteca e conhecimentos de filosofia e astrologia, como autodidata. Almoçamos e jantamos em um ou outro restaurante. Ele ficou de vir a Ribeirão Preto, uma vinda sempre adiada, até que não pôde mais vir…
Ele saiu do DCI e eu retornei a Ribeirão, de onde nunca saíra. Não mais nos falamos. Os telefones ficaram mudos, não ecoaram nossas vozes. Não soube de sua doença. Agora sei de sua morte.
Num daqueles almoços, perguntei-lhe o que aconteceu, qual fora o roteiro de sua vida após a sua saída do escritório, depois da minha.
Ele me contou que seu pai, que sempre dissera que sua mãe morrera, confessou-lhe, no leito da morte, que ela e a família viviam em Governador Valadares. O pai morreu. O menino sozinho no mundo…
Ele escreveu uma carta ao prefeito de Governador Valadares. Era um ano eleitoral, mas no ano seguinte chegou uma resposta. Realmente os familiares viviam lá.
Preparou-se para viagem, mas pegou um ônibus errado e foi parar em Furnas. “Por sorte”, disse ele, “pois, viajei com um engenheiro que gostava muito de cinema, e ele ficou impressionado com o menino conhecedor de filmes e diretores, especialmente os dirigidos pelo sueco Ingmar Bergman”.
A forte impressão do engenheiro coincidira com a minha, lá no escritório. Um menino, que entendia profundamente de cinema, muitas vezes sem ter assistido nenhum filme…
E ele falou da sorte, mas não demorou nela. Provavelmente, o engenheiro lhe oferecera sua casa e o ajudara a chegar a Governador Valadares.
Lá encontrou a família, fundou um cineclube.
Um dia, convidou um medalhão de São Paulo para falar sobre cinema. Nova surpresa, o jovem tinha lido livros e mais livros que talvez o medalhão só soubesse da existência deles. Assim, o jovem foi convidado para ser editor de uma revista de cinema. A revista morreu cedo, e aí ele iniciou sua brilhante vida de jornalista, na capital de São Paulo.
No mais, a imprensa da capital veiculou sua biografia.
De minha parte, eu, que um dia lhe dei um livro, lá na sua infância precoce, ofereço à sua memória a história do menino que entendia de cinema, até sem assistir filmes, nesse momento em que, na idade adulta, o silêncio definitivo o envolveu.
Saudades, Getúlio, saudades.
Publicado originalmente em Tribuna em 10 jun. 2009.