O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves, morreu, na última sexta-feira, aos 90 anos, em Brasília, e seu corpo foi velado na Corte na qual exerceu sua magistratura superior, de 1975 a 2003.
Professor e jurista de extraordinária cultura jurídica, ele foi involuntariamente o responsável por marcante e significativa movimentação estudantil, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nos idos de 1960, provindo do Rio de Janeiro para disputar a vaga de titular da cátedra de Direito Romano.
O concurso naturalmente atraía poucos alunos, poucos visitantes. E assim é que começou aquela semana de final inesquecível. Mas, no pátio da Faculdade, que o Professor Goffredo da Silva Telles poeticamente chamou, e assim ficou, como o jardim de pedras da nossa Faculdade, ou jardim de pedras de nossa Academia. Ele relembrava as vozes históricas, que muitas vezes ensurdeceram os ouvidos e a consciência da nacionalidade, moviam em silêncio o que estava acontecendo no auditório daquele concurso. Corria solto a forte impressão de que o ganhador seria o filho do titular da cadeira em disputa.
Só que se comentava o brilhantismo daquele professor de direito civil, que viera para a disputa, com uma oratória brilhante, de explicação lógica e fácil, com a qual o emaranhado da cultura romana, com seu arcabouço jurídico, ficava atraente e faria com que os jovens estudantes até se estimulariam no estudo, para ser tal qual um orador, tal qual um professor brilhante, tal qual uma narrativa jurídica que sempre enalteceria seu portador. Seria tal qual um exemplo.
E o pátio começou a ferver de comentários elogiosos, assim num crescendo.
Enquanto no correr da semana os comentários ferviam no pátio, o auditório ia recebendo mais ouvintes, mais assistentes. E os comentários de que o mérito seria engolido pela patranha de uma escolha antecipada, mais e mais a palavra de cada um ganhava força de mobilização.
Finalmente, chegou o sábado em que se ouviria o resultado. Chegara o momento de se saber quem seria o titular da cátedra de direito romano.
O auditório totalmente lotado, tanto a parte das cadeiras defronte à banca posta em um nível um pouco superior, quanto a parte de cima, abarrotada de alunos estridentes.
O ministro aposentado foi simplesmente preterido, ganhou o filho do titular da cadeira de direito romano. Era o filho protegido do pai prestigiado naquela casa. O pai era um excepcional professor da matéria. Assim se pensava à época, exatamente naquela semana de mobilização gradual e crescente.
A revolta foi geral, apesar de estar na banca o eminente professor de direito civil Vicente Rao, que tanta honraria acumulara durante sua vida de cultor do direito.
O burburinho resultou em manifestação de humilhação da banca, e sobre ela recaia, jogada aos borbotões da parte de cima do auditório, uma chuva de moedas, com os gritos juvenis de vendidos, vendidos, vendidos.
Os estudantes saíram do auditório cantando o cântico de luta em que se dizia: “Vamos fazer revolução, nosso chefe é você Moreira, nossa arma é o coração”.
Passando pelos corredores de cada andar, com os bustos das pessoas históricas que escreveram o passado da Faculdade, assentados em pilares de mármore, procedia-se ao gesto de virá-los para as paredes, como um sinal de solidariedade no protesto, que se considerava necessário e justo.
Um corredor polonês foi organizado na saída do elevador, já no pátio. Por ele passavam os membros da banca, inclusive o professor Vicente Rao que, chamado de vendido, ameaçou tirar satisfações, mas acabou prometendo que jamais voltaria à Faculdade. E, realmente, nunca mais apareceu, inclusive era o professor da turma que se diplomou em 1964.
A Faculdade de Direito naquele dia foi tomada pelos estudantes.
Essa posse durou meses. Ela atravessou o dia em que o Secretário Geral da ONU, o budista U Thant, visitou a Academia e fez uma palestra. No meio dela, o Presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto pediu a palavra e leu um pequeno texto, que havia sido preparado para a ocasião e distribuído no auditório.
O Diretor da Faculdade de Direito era o famoso Gaminha, que depois seria um prócer servil da ditadura militar, e tentou proibir o Presidente do Centro Acadêmico de falar, o que não conseguiu porque era tão objetivo e forte que antes do Diretor sua fala frustrada terminar tudo tinha terminado. O Diretor dizia: –“…coisa de comunista”, o que se comprova que a idiotia nacional é mais antiga do que se pensa, já que qualquer justo protesto ou democratização de benefícios sociais, recebe o apelido impensado e burro de comunista. Os assessores de U Thant receberam o pequeno texto e nada viram de comunismo.
O tempo foi passando. E aconteceu até a visita de uma delegação de estudantes ao então governador do Estado, desembargador Syllos Cintra, que substituía o governador Carvalho Pinto e seu vice, impedidos eleitoralmente de permanecerem em seus cargos.
A visita foi emocionante, pois Syllos Cintra era pessoa afável, elegante no trato, que respeitou muito a ânsia sonhadora daquela juventude, e até se emocionou com o discurso que ali se fez, mas aconselhou a desocupação da escola e a volta às aulas. E assim se fez.
Anos depois, em Brasília, no Supremo Tribunal Federal, eu me apresentei como um dos estudantes que lhe prestara solidariedade no final daquele concurso, que foi resolvido nas instâncias judiciárias.