A vitória de Barack Obama representou um suspiro de alívio, quando não de esperança. Afinal, o fundamentalismo que a direita norte-americana exibiu ao mundo, com apoio declarado do raivoso governo israelense, aprofundaria as contradições internas e seguramente não traria boas políticas para o multilateralismo do mundo, muito menos paz para o Oriente Médio. Pode-se dizer que foi uma vitória da razão, como se fosse sempre um milagre alcançá-la, apesar do passionalismo que envolve a luta politica.

Mas a surpresa – e boa surpresa – veio de Israel, já que o radicalismo de seu premier, crente de vitória esmagadora, com seu direitismo baboso, inspirador da convocação das próprias eleições, ao menos foi abalado pelo resultado que conferiu força de pressão e barganha aos que estão a sua esquerda, e também ao partido criado por um apresentador de televisão, que se situa ideologicamente no centro e que foi surpreendentemente muito bem votado.

Reabre-se a possibilidade de um retorno ao processo de acordo de paz no Oriente Médio. Caminho ainda tortuoso, caminho ainda longo, muito longo.

Entretanto, segundo a jornalista francesa, Viviane Forrester, árabes, palestinos e judeus, como pressuposto de sua procurada convergência pela paz, deveriam compreender antes que todos eles são vitimas do chamado O crime ocidental. Essa grave imputação inicia-se praticamente com a Conferência convocada pelos Estados Unidos na cidade francesa de Évian, e realizada entre os dias 6 a 15 de junho de 1933. A pauta, que reuniu 33 países, era o aumento das respectivas taxas de imigração, para acolherem “os judeus vítimas da ideologia nazista”. Só que, excetuando Holanda e Dinamarca, nenhum país concordou com esse aumento, sendo que depois desse conclave, Argentina, Uruguai, México e Chile agiram ao contrário, reduzindo suas cotas.

As razões dessa negativa tinham inspiração dissimulada no antissemitismo, tanto que este não foi a razão de as nações aliadas entrarem na guerra. Elas, que negaram o aumento da sua cota de imigração, lutaram para conter o expansionismo da Alemanha, não para combater aquele antissemitismo selvagem. Haja vista o memorando do governo francês, dando antecipadamente garantias ao ministro das Relações Exteriores do Reich, de que naquele encontro internacional de Evian “nenhum dos Estados contesta ao governo alemão o direito de tomar, com relação alguns de seus compatriotas, medidas que digam respeito unicamente ao exercício de sua soberania”.

Tal hipocrisia coletiva serviu de zombaria por parte dos nazistas, que chegaram a dizer: “As nações que se dizem a favor dos judeus, não os aceitam em seu território. Falam tanto deles e os rejeitam?”.

Até a neutralidade da Suíça se revelou macabra depois de mais de meio século, quando, em 2004, ela reabilitou cidadãos, sem direito à indenizá-los, que tinham ajudado os refugiados judeus da Alemanha. Também não escapa dessa cautela criminosa o presidente da Cruz Vermelha da época, que “esteve vigilante para que ela [Cruz Vermelha], continuamente informada, não interviesse nunca, ou então bem raramente e o mais timidamente possível, sem insistir e sem se comprometer em face das perseguições sofridas pelos judeus, dos suplícios da hecatombe em curso”.

E, no final da guerra, escancarado o horror dessa barbárie com os campos de concentração, o fedor de seus fornos crematórios e a humilhação e morte de homens, mulheres e criança, as nações cristãs do Ocidente, em ato de contrição, tiveram que encontrar “a terra prometida” para alocar a reivindicação antiga, que poderia ter sido, no começo do século passado, como proposto, e, portanto, antes da guerra, num pedaço da Argentina, ou na África, mesmo sem prévia consulta de seus respectivos habitantes. Eis que escolheram a terra ocupada por palestinos e árabes e poucos judeus, que tinham adquirido pedaços, já numa visão estratégica de desapropriação compulsória.

Isso não significa que tudo acabou com a guerra e a criação do Estado de Israel, pois milhares de judeus permaneceram em campos de refugiados durante anos, criticados por muitos “sionistas”, que diziam que aqueles tinham sido covardes, porque não haviam pegado em armas, como se essa opção tivesse sido possível.

Com tudo isso, e ainda assim, o argumento de que eles, judeus, há mais de dois mil anos tinham sido expulsos daquelas terras pelos romanos – e não pelos árabes –, não tem nenhuma eficácia histórica suficiente para fundamentar a garantia de seu retorno – brutal – pois se esse argumento valesse, o território de todas as Américas deveria ser devolvido aos indígenas, ocupado há pouco mais de quinhentos anos. Além do mais, os palestinos e árabes tinham até títulos de propriedades fornecidos pelo Império otomano.

A comunidade internacional – na sessão memorável de 1947 da ONU – aprovou o Plano de Partilha da Palestina, dividindo-a em dois Estados, um árabe, outro judeu, com a declaração oficial da criação do Estado de Israel em 1948. Enquanto isso, para o lado palestino, aconteceu o reconhecimento só implícito do Estado palestino em dezembro de 2012, 64 anos depois, com a sua declaração de Estado Observador pela ONU, qualidade com a qual participará das suas assembleias, podendo requerer apuração de crimes de guerra nos seus conflitos, por exemplo.

Na verdade, a criação do Estado de Israel sobrepôs os destinos de dois povos, um em cima do outro, mesmo sabendo, como disse, em 1995, o primeiro ministro de Israel, Yitzhak Rabin, a frase que teria sido a causa de seu assassinato: “Voltamos a Israel e fundamos um povo, mas não voltamos para um país vazio. Havia lá palestinos”. Na mesma linha, e muito antes, o general judeu, Moshe Dayan preconizava, em 1956, que “será preciso combater os árabes porque nós tomamos a sua terra”.

Se, de um lado, o Tribunal de Nuremberg não julgou os crimes anteriores a 1939, se muitos dignitários nazistas retornaram a suas posições sociais até nos países que cometeram seus crimes, de outro lado, na posição forçada de suposto devedor de suposta divida, os palestinos e árabes começaram a pagar − também com humilhação, também com sofrimento, também com mortes, também com campos de refugiados − a duplicata histórica dos pogroms e do genocídio europeu, gerados pelo crime de omissão das nações ocidentais, que envolve a todos, como vítimas, incluindo nelas, evidentemente, os judeus.

As vítimas desse “crime ocidental” − acredita-se − depois de mais de cinquenta anos, devem assumir conscientemente essa fatalidade histórica. E a carga desse patrimônio inigualável de sofrimento e dor que se acumulou ininterruptamente nesse espaço de tempo de ambos e de todos os lados deve servir de alicerce para que judeus, palestinos e árabes construam sem medo, desconfiança e temor, assim consciente, assim responsável e assim histórico, o diálogo da paz, com o reconhecimento e a criação do Estado palestino. Mas que o façam sem intermediários, diretamente, olho no olho, como vítimas daquele crime inominável de todos que perderam a autoridade moral com sua prática omissiva.

A derrota da direita furibunda, nos Estados Unidos e em Israel, é um sinal ou aceno dessa possível reabertura de caminho.

Publicado originalmente em O Diário, em 18 de janeiro de 2013