Essa insurgência nas ruas se aproxima mais da rebelião de 1968, em Paris e no resto da Europa, do que da manifestação dos caras pintadas brasileiros, na década de 1990.

Se a preocupação é descobrir quem a lidera, fica-se tão perplexo quanto desnorteado, porque, se um grupo foi responsável pela convocação inicial, o fato é que esse grupo se diluiu na extensão que ganhou o movimento.

Entre 1968 e 2013, se existe um denominador comum, que é o restabelecimento da soberania das ruas, há uma diferença que distingue um tempo do outro, e que se resume no instrumental com que se convocam as pessoas. Agora, são as redes sociais, enquanto em 1968 não se falava desse tipo de comunicação, instantânea e universal.

Esse monumental protesto ficará no limite aparente, já que, em São Paulo, a pauta de reivindicação só apresenta a redução de vinte centavos na passagem do transporte público?

Não ficará por aqui a consequência desse extraordinário movimento, pois, se houver redução do preço da passagem, ela será assumida, com justiça, como conquista do movimento. Essa conquista sugere expectativas e ações, que seguramente vão substituir o aumento da passagem para outra breve proposta.

O movimento não é uma insurgência contra o pacto político-partidário que o Brasil assumiu em 2008, como analisa um filósofo, pois o movimento da Ética na Política ficou no subsolo da consciência popular, esperando a chama de um palito de fósforo social para apresentar a grandeza e as consequências da soberania popular, quando ela decide valer-se diretamente. Depois, a Primavera Árabe, por outras razões, causou o que causou. E na Turquia, o primeiro ministro, que tem um índice de popularidade excelente, é alvo de uma crítica social fortíssima, com um movimento das ruas enfrentando a polícia, porque pretendia se desfazer de um pedaço de uma praça famosa para construir um quartel.

Comparando a pauta de reivindicação dos movimentos e a expansão inesperada deles (o aumento de passagem de ônibus e o quartel numa praça, mesmo que se invoque o símbolo histórico dela), tem-se que o grau de indignação expandida e a revolta acontecida, tanto num caso como noutro, ultrapassam qualquer símbolo e qualquer reivindicação imediata. O problema deixa de ser de uma determinada comunidade ou cidade para se tornar um grito pela paz, pela justiça e pela liberdade – um movimento anti-institucional, como se houvesse consciência plena de que o chamado Consenso de Washington consagrou o neo-liberalismo, que desgraça tantos países, levando milhões de pessoas à pauperização  imediata ou gradativa, em nome da austeridade financeira, reduzindo empregos, mercados consumidores, comprometendo parques industriais e agravando a competitividade entre as nações.

A democracia, como organização política da sociedade, poderá antecipar a adoção da via digital para se comunicar com o poder institucionalizado, que poderá dispensar os clássicos representantes do povo (senadores, deputados e vereadores), com suas máquinas eleitorais formadas não só por pessoas indicadas para ocuparem cargos (de preferência nos quais circulam muito dinheiro), como também por assessores, que ocupam cargos de confiança, trazendo na bagagem só a capacidade do trabalho eleitoral, desmentindo assim os partidos, que não têm organização alguma para eleger todos, apesar de serem os donos do mandato de cada um que se elege.

Com a redescoberta das ruas, nessa dimensão, até a arquitetura das cidades poderá sofrer mudança radical, pois os tais condomínios que têm o condão de retirar a sociabilidade das pessoas do lugar que lhes pertence, como seres sociais, seguramente serão substituídos por construções paralelas às ruas.

Quando a voz do povo se pronuncia para valer, as instituições se revigoram. Há uma espécie de surda profilaxia, e a sociedade redescobre sua força e dignidade para criar novos campos de paz ou de luta.

Manifestação sem violência, sem vandalismo. É difícil, no entanto, o Estado deixar a violência de lado, pois, além de ter, por definição, o monopólio dela, seus soldados têm uma cultura herdada, que considera, em situação como essa e contraditoriamente, a parcela do povo insurreto como verdadeiro inimigo. Se já começou algum trabalho para substituí-la, como é preciso, ainda não há o efeito preponderante de uma polícia preparada para agir dentro do Estado Democrático de Direito.

Publicado originalmente no jornal O Diário de Ribeirão Preto, em 21 de junho de 2013.