A população carcerária do país, a quarta do mundo, é de 640 mil presos, e desse total 12% cumprem pena por homicídio doloso. E esse número só não é maior porque a policia só investiga 8% dos 56 mil homicídios que ocorrem anualmente no país, e também porque há ainda um volume grande de mandados de prisão não cumpridos. Os números estão na entrevista do sociólogo Luiz Eduardo Soares, publicada no Suplemento Semanal do jornal Valor.

Ainda existem 500 mil mandados de prisão para serem cumpridos, estimativa que não inclui todos os estados brasileiros, apesar de o Conselho Nacional de Justiça ter instituído órgão de armazenamento de dados e controle visando um planejamento mais realista.

Pairando sobre essa realidade dramática, não concorre somente falta de recursos financeiros. Mais do que essa carência, concorre o preconceito difuso na sociedade, que impede um olhar de racionalidade a esse segmento da própria sociedade que, como primeira reação, preconceituosamente, ela rejeita. Trata-se de uma dificuldade à política de reintegração do preso, que, se concebida com racionalidade eficaz, custaria menos de R$ 1.800,00 do que custa, por mês, cada um.

A consequência desse preconceito pulula no interior dos presídios, cuja maioria da população é composta sobretudo de jovens, negros e pobres. E algumas histórias provam sua existência dramática, como também destacam a violência interna do encarceramento. Como mera ilustração, há duas.

Um jovem negro, ex-ponta-esquerda do Santo André, revelou assim o drama de sua segunda prisão: “eu cometi um delito, cumpri minha pena. Sai, arrumei emprego, uma namorada, marquei casamento até. Mas o patrão soube que eu estive no Carandiru e perdi meu emprego, perdi minha namorada, cometi novo delito, e voltei para cá”.

A outra história é a do agradecimento de um preso ao chefe da fábrica de calçados da Penitenciária de Tremembé. O chefe chegou de manhã, encontrando o preso conversando com um guarda da prisão. Cumprimentou-os, declinando o nome de cada um: “Bom-dia, Antônio. Bom-dia, José!”. Dias depois, o preso procurou o chefe da fábrica, agradecendo-o, e lhe dizendo que ele salvara a sua vida. Surpreso, ele exclamou: “Eu salvei a sua vida? Como? Quando?”. A resposta veio assim: “Aquele dia de manhã, quando eu conversava com o guarda, você me cumprimentou declarando meu nome. Eu estava decidido a me enfocar com essa cordinha, mas sua saudação respeitosa fez com que eu desistisse da morte. Fazia mais de dez anos que ninguém me chamava pelo nome”.

O primeiro caso ressalta o preconceito que invade todos os escalões da sociedade, ampliado em sua intensidade pelas notícias da criminalidade que os programas televisivos, como verdadeiras fábricas de alienação, potencializam, instigando maior insegurança e maior medo, que vitimam mais seus telespectadores.

No segundo caso, se a ausência de autoestima prevalece nos crimes mais hediondos, a prisão, já no primeiro momento, retira o que individualiza a pessoa. Seus trajes e seus adereços são entregues à obediência devida à homogeneidade das regras. Depois, a convivência nas celas abarrotadas de outras tantas pessoas, algumas violentas, outras exigentes de submissão sexual. Essas são penas acessórias, que não integram a sentença judicial, mas que vigoram na intimidade daqueles espaços pequenos, como realidade nua e crua.

Nesse sistema prisional, a chamada ressocialização converte-se em conquista de heróis, que, cumprindo a pena, conseguem integrar-se à sociedade, querendo esquecer o que faz parte de sua história.

Uns conseguem conviver com o outro que se fixou dentro deles, outros não aceitam o que foram, ou se identificam, de vez e para sempre, com o que tinham sido, não suportando o outro de si mesmo.