“[…] políticos são eleitos para proteger o povo, não para apresentar-lhe a conta dos erros que eles não sabem corrigir”
Júlio Chiavenato
Nossas instituições aparecem degradadas por uma consciência deficitária de muitos dos ocupantes de seus cargos. Vigora assim, para um grande número deles, para não dizer da sua maioria, a certeza de que o emprego público é bom, garante salário, prestígio, autoridade (“Você sabe com quem está falando?”), e, no caso de cargo eletivo, a certeza, que nasce antes da posse até, é a de que é necessário ser reeleito, custe o que custar.
Esse sentimento faz das instituições públicas, ou dos poderes públicos, verdadeiras frentes de trabalho, cujo emprego, ainda que sujeito a uma data limite, é posto muito acima do interesse público.
Tal irresponsabilidade não confere efetividade à aplicação das leis. E não é por falta delas que se assiste a esse panorama de baixo nível da representação política.
A Lei Orgânica do Município é a sua constituição para o formato de ente federativo que lhe foi conferido pelos constituintes de 1988. A Lei Orgânica tem correspondência absoluta com a Constituição Federal e a Constituição Paulista. E a atuação do servidor e do agente público é regida inclusive pelo princípio da legalidade, e não só por esse. E por estar cercado e envolto por ele, qualquer ato do Poder Legislativo ou do Executivo deve ter como fundamento uma regra legal, ou seja, agentes políticos e servidores públicos não podem fazer o que querem, pois todo ato desses poderes ou órgãos deve ser autorizado por lei.
Perguntar-se-á: Por que o Poder Público, que é cercado e regido por tantos princípios, como o da legalidade, da transparência, da impessoalidade, e de muitos outros, e ainda por tantas leis e resoluções, pode ser assaltado por tanta corrupção?
A resposta está na omissão da fiscalização, tanto do poder Legislativo como dos órgãos internos de controle do poder Executivo e do Legislativo.
Como não há fiscalização eficiente, a atuação parlamentar é mais de aparência, para gerar publicidade, ainda que episódica, e que se basta para dar ao agente político uma justificativa medíocre ao seu eleitor. É o reinado do faz de conta.
Essa fiscalização externa dos atos da administração pública e de suas eventuais consequências decorre da Constituição da República, que, no seu Artigo 31, dispõe, imperativamente: “A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo e pelo sistema interno […]”. E ainda complementa, em seu parágrafo primeiro: “O controle externo da Câmara Municipal será exercido com auxílio do Tribunal de Contas […]”.
Se a Câmara Municipal tem o dever-poder, previsto na Constituição, de fiscalizar a execução orçamentária, a extensão dessa obrigação é amplificada porque nenhum ato oficial pode ser realizado sem que haja autorização orçamentária. Tal fiscalização não se restringe a mera destinação do repasse de verba, mas inclui também a qualidade objetiva e concreta dessa execução, seja obra, seja serviço.
A má execução de uma obra pública é de responsabilidade de servidores do Executivo, que deve realizar seu dever de fiscalização eficazmente, e também é de responsabilidade da Câmara de Vereadores.
Esse reinado do faz de conta pode criar um fenômeno escandaloso, que envergonha o desavergonhado, o poder para o qual foi eleito, o seu eleitor e a cidade que o empossou no cargo.
Cada parlamentar eleito jura a Constituição e as leis do país, mas em regra desconhece, ou conhece e não pratica, os poderes que lhe foram conferidos pelo silêncio soberano das urnas.
A relação mais deprimente nesse momento de crise política é revelada pela prática quase usual de vereador, que sem esgotar os poderes de que foi investido, inclusive o de recorrer ao auxílio constitucional do Tribunal de Contas, anuncia sua coragem de ir contar para o Ministério Público a ilegalidade que ele tem conhecimento, e que ao Ministério Público dá ciência. Esse ato representa a confissão de quem é omisso, de quem prevarica, de quem não sabe que exerce um poder, de quem não sabe que a diferença entre o membro do Ministério Público e ele. Um é concursado, o vereador é eleito pela soberania popular. Essa distinção é nuclear no sistema da representação política.
O parlamentar é representante de um poder, o promotor é membro de uma grande instituição, que não é poder, mas cujo abuso de alguns de seus membros faz parecer que querem estar impunemente acima dos demais poderes da República.
Quando o vereador age assim, na verdade ele confessa a omissão de seu agir.
O vereador que é omisso no seu dever-poder de fiscalizar pode responder a um processo de cassação de mandato se houvesse uma Câmara plenamente cumpridora de seus deveres constitucionais; ou ainda pode responder pelo seu ato omissivo por meio de ação civil pública, cuja titularidade pertence não só ao Ministério Público, como também à associação que tenha sido prejudicada, em seus propósitos associativos, pela prevaricação do parlamentar.
Não é por falta de leis que se tem esse panorama administrativo e político, que desalenta o cidadão, pois, “políticos são eleitos para proteger o povo, não para apresentar-lhe a conta dos erros que eles não sabem corrigir”.
Valério Veloni disse:
Caro colega e amigo FERES.
1. Embora nem sempre eu concorde com o Chiavenato, a frase dele sobre a qual você construiu seu artigo, é lapidar. (…políticos são eleitos para proteger o povo, não para apresentar-lhe a conta dos erros que eles não sabem corrigir)
2. Atuei no parlamento local (1989/1996) e não me candidatei a reeleição; embora no meu último ano de mandato tenha sido Presidente da edilidade, o que me dava alguma projeção/visibilidade que me favoreceria no pleito eleitoral seguinte. Não; o exercício da vereança não é profissão! Em dois mandatos, qualquer vereador tem tempo e espaço para atender seus anseios de servir à comunidade. Não precisa mais!!
3. Deixo claro, amigo Feres, que, na minha ótica, o cerne da corrupção e de outros usos indevidos do “múnus” (principalmente no legislativo), é o instituto da reeleição ilimitada.
4. Quanto a fiscalização da gestão pública municipal, entendo que o erro começa no Sistema da escolha/indicação dos Conselheiros dos Tribunais de Contas; são todos ex-parlamentares, ex-ministros, ex-secretários de estado. Em São Paulo, você sabe melhor do que eu, a composição, ao invés de na Corte de Contas estarem técnicos auditores estão políticos (como, por exemplo, ex-secretário da Casa Civil do Governador)…. Você vivei esse meio!!!
5. A atuação fiscalizadora do parlamentar é fundamental. Para isso ele tem de ter independência. No meu exercício da vereança dou dois exemplos: (i) no processo de transformação da CETERP em S/A e a colocação das suas ações à venda; (ii) no processo/licitação da concessão do tratamento de esgoto. Ambos no Governo Palocci, e você estava lá !!!
6. No primeiro caso, enfronhei-me na lei das S/As, no mecanismo da Bolsa, etc, etc; questionei, presidi Comissão Especial de Estudo, ouvimos técnicos, especialistas, etc.
7. No segundo caso, aprendi tudo sobre concessão de serviços públicos (questão até então insipiente) e, na lei que autorizou a licitação, vinculamos uma minuta de Contrato cujo cerne era a equação econômica do cálculo da Tarifa de Esgoto, a ser cobrada pelo DAERP. Se aquela equação fosse mantida até hoje, o preço do tratamento que hoje nos cobram, representaria cerca de 80% do custo da água e não os 150% que somos cobrados atualmente. A alteração do cálculo da equação começou no Governo Jábali, quando a concessão estava no início, e, depois, em outros governos subsequentes, a evolução do preço do tratamento de esgoto chegou nos parâmetros atuais, o que torna esse Serviço Público em Ribeirão Preto o mais rentável que se conhece.
Grande abraço e desculpe-me pelo desabafo!!!
VALERIO VELONI
OAB-SP 31.207
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Feres Sabino disse:
Caro amigo Valério,
Sua participação – com seu denominado desabafo – nessa proposta de debate que representa o artigo A responsabilidade do parlamentar, só o enriquece, até porque sou mais do que testemunha da sua experiência, oriunda do exercício de sua vereança, produtiva, realizadora e ética.
Na verdade, nesses últimos anos, a consciência dos problemas e das coisas ficou muito maior.
Contudo, você abriu mais uma vertente do problema quando falou da composição dos Tribunais de Contas, ocupados por ex-políticos, com a qual estou de pleno acordo. E acrescento outra disfunção de nosso sistema político, que é a de permitir que vereador eleito possa ser secretário, que deputado estadual possa ser secretário e que deputado federal possa ser ministro. O desenho dessa promiscuidade disfarçada faz convergir, paradoxalmente, o eleito para fiscalizar a prática sua de atos que ele mesmo deve fiscalizar, quando não prevalece o interesse partidário, ou a defesa corporativista de seus colegas deputados ou vereadores. Lembro essa hipótese: o que ocupa um cargo executivo por curto período e depois retorna ao Parlamento que deve, ou deveria, fiscalizá-lo. É uma baba institucional.
Ah! Tem os candidatos derrotados que são premiados com cargos e funções. Nós temos, aqui em nossa cidade, o precedente de os importamos de outros municípios até, como se aqui não houvesse pessoa competente para ocupar qualquer cargo ou função.
Sobre o problema criado pela reeleição de vereador também concordo, não deveria ser reeleito mais do que uma só vez. E mulher e parentes até terceiro grau deveriam ficar impedidos de disputar eleição, no prazo mínimo de três anos, após o término do mandato do patriarca.
Você disse, acertadamente, que vereança não é profissão. Concordo e vou além: penso se deveria receber subsídio, pois não sendo profissão, como realmente ela não é, o vereador exerce outra, em sua cidade. A prática tem revelado que a função pública está mais para um “bico” dos céus, que rende bom salário e grande prestígio.
A Câmara deveria ter um convênio com a Faculdade de Economia, para analisar, técnica e minuciosamente, não só a lei orçamentária como sua execução, como analisar as leis que compõem as diretrizes da cidade que sonhamos e queremos.
A Câmara deve fiscalizar a fiscalização da administração, desde o momento em que assina a notificação, cujo padrão deve estar absolutamente dentro da lei, até a indicação do local e endereço em que se encontre o processo do qual resultou tal notificação.
No ano passado, a Câmara não conseguiu acesso à planilha de custo do transporte público. É possível isso? Mais ainda, quando vereadores foram à secretaria, o jornal publicou que o secretário, que não estava, tinha levado consigo as planilhas. É inacreditável!
Quando alguns fazem um bom trabalho, como a CPI sobre a reciclagem do lixo, a prefeitura nem toma conhecimento, numa prova de alienação absoluta, deixando uma pergunta no ar: “Será que é só alienação?”. Nenhum vereador continua batalhando em defesa desse grande trabalho.
Você ainda fala sobre a equação para fixar a taxa de esgoto e o exagero de sua cobrança, pois deveria, hoje, ser de 80% do valor da água, e cobra-se o absurdo de 150%. É matéria de CPI porque, se a taxa foi estabelecida por edital, que é a lei da licitação, não poderia ser alterada e pode ser revertida. E a Transerp que não consegue modernizar os semáforos.
E o Aquífero Guarani, nosso patrimônio que pertence à humanidade, que agora se sabe ter despertado a ambição internacional para seu controle, a Câmara o trata com tal discrição, que nem parece que ela se importe. Não adianta só convidar pessoa para fazer conferência.
Mas, a Câmara tem a tal Comissão de Estudos. O relatório de uma delas que li, há tempos, sobre o Daerp dá a impressão que tal comissão é uma espécie da alfabetização de adultos, tão só. Não serviu para nada de efetivo.
Vou lhe contar um caso pessoal, para você aferir o que é desorganização administrativa com ele. Seguramente você a conhece, até melhor do que eu, com outros exemplos.
Em 2008, o Daerp me notificou em nome de minha mãe. Ela teria feito ligação clandestina num terreno grande, da rua Javari, onde se localizam cinco ou seis prédios de apartamentos.
Fiz uma petição, estranhando, pois minha mãe já tinha falecido há aproximadamente seis anos, e antes a família vendera o terreno, no qual imediatamente construíram os tais prédios.
É possível imaginar, honestamente, que o Daerp não sabia da construção de tantos imóveis durante anos e anos naquele local.
Pior. Em 2013, repetiram a mesma notificação. Dessa vez, eu avisei: vai ser uma gargalhada nacional. Acredito que não vá acontecer de novo.
Valeu, Valério. Você me honra com sua participação, que não foi a única vez que aconteceu.
Abraço fraterno,
Feres Sabino