Num país em que seu presidente defende a tortura e tem por herói um torturador, seguramente traz em sua cultura, ainda que de forma difusa, a punição como instrumento redentor da pessoa recolhida pela rede da discriminação social.

Punir em época de indignação social incentivada pelos feitores de uma ordem ultrapassada significa uma oferenda à tortura psicológica ou física.

Essa cultura geral da punição invade instituições e governos, que a apresentam de forma dissimulada, como se estivesse fazendo um favor ao punido.

No espaço geográfico de cada município, pode-se avaliar essa impulsão no agir de servidores encarregados da fiscalização, que obedecem à ordem da hierarquia para se ter a consequência da violência praticada.

Isso pode ser visto em Ribeirão Preto. Para salvaguarda da saúde pública, negócios de pessoas humildes têm sido multados por estarem abertos, quando há ordem municipal para estarem fechados, obrigatoriamente.

A multa, proporcionalmente ao tamanho do negócio pequeno, é desproporcional.

Mas o caso nem é de proporcionalidade, senão de respeito e da responsabilidade do poder público quanto à manutenção do pequeno comércio, após a passagem da crise.

A questão, por isso, é de se colocar como prioridade a função pedagógica do poder público, sufocado pela onda punitiva sugerida pela invisibilidade do vírus.

Orientar primeiro, punir após duas advertências.

O poder público não pode querer disputar com o vírus a letalidade do “até matar”, se não se cuidar. O poder público não pode ser fator de incerteza maior, de instabilidade maior, de terror maior.

Advertir duas vezes, depois se aplica a multa.

E mais, nessa crise, a municipalidade – diz-se – continua, por exemplo, telefonando para aumentar a insegurança da cidadania, cobrando tributos – “O seu IPTU está atrasado”, diz a voz cavernosa. Nem se sabe como ganhar dinheiro nessa crise e depois dela, como saber o que fazer para pagar tributos e tantas outras obrigações?

Ora, a racionalidade impõe conduta exemplar do poder público, que pode aguardar ao menos o período eleito como o do pico da contaminação, para depois reiniciar a cobrança por meio das tais ligações telefônicas. Poderá com mais segurança, depois desse período crítico, reordenar o confinamento e afrouxar o isolamento atual. Quem sabe?

O poder público deve assumir posição diferente da do vírus, porque ele quer salvar a saúde pública e a saúde dos negócios grandes e pequenos, sendo que, tanto para um como para o outro, o efeito da saúde a ser restaurada se dará depois da crise, uma vez que agora o império da ameaça é o do vírus.

Por isso, o poder público municipal deve cancelar qualquer multa que não tenha sido precedida de, no mínimo, duas advertências. Nesse período crítico sua função é a de combate ao vírus, mas sem assumir qualquer forma da sua letalidade.